A reforma tributária brasileira, decorrente da Emenda Constitucional nº 132/2023 e da Lei Complementar nº 214/2025, tem como principal objetivo a simplificação do sistema tributário vigente desde a Constituição de 1988. Ao menos inicialmente e por estes textos ela centra-se na tributação sobre o consumo, objetivando algo que se assemelhe ao Imposto sobre Valor Adicionado (IVA), embora dual, posto que, de um lado haveria o IBS, em que se reuniriam ICMS e IBS, a serem destinados a um Comitê Gestor, composto por representantes estatais e municipais que cuidaria em distribuir o produto da receita, proporcionalmente, entre estes entes e, do outro lado, a CBS, que reuniria PIS e Cofins e seria direcionado à União
Dentre os diversas e infindáveis discussões já existentes e que ainda haverão de ganhar destaque, uma delas chama atenção: o tratamento tributário do ato cooperativo.
A Constituição de 1988 determinou que a lei complementar deveria assegurar às cooperativas um “adequado tratamento tributário”, mas nunca deixou claro o que deveria ser entendido por isso. Durante décadas, a questão permaneceu em aberto, gerando insegurança jurídica e interpretações divergentes. O que é, afinal, o “ato cooperativo” que merece tratamento diferenciado?
A Lei nº 5.764/1971, a chamada Lei Geral do Cooperativismo, há muito, em seu artigo 79, definira o ato cooperativo como aquele praticado entre cooperativa e associados, ou entre cooperativas entre si, para a consecução dos objetivos sociais. O parágrafo único deste dispositivo, inclusive destaca que o ato cooperativo não implica operação de mercado, nem contrato de compra e venda de mercadoria.
As sociedades cooperativas não possuem intuito lucrativo, mas para exercerem seus objetivos sociais comumente se relacionam com outros agentes de mercado o que, inclusive, justifica sua natureza jurídica própria, como há muito defendemos [1], e não como sociedade simples, ao arrepio do artigo 982, parágrafo único, do Código Civil, posto que, apesar de não ter intuito lucrativo, exerce profissional atividade econômica organizada, logo atividade tipicamente empresarial.
Uma leitura apressada do artigo 79 da Lei nº 5.764/71 poderia resultar no entendimento de que estaria excluído do conceito de ato cooperativo as relações que as cooperativas celebrem com terceiros, isto é, não associados ou que não sejam outras cooperativas [2].
Contudo, sem se relacionar com o mercado, nenhuma cooperativa consegue cumprir sua função social, mesmo porque uma sociedade cooperativa compreende um empreendimento econômico de propriedade compartilhada entre os associados, também ditos cooperados, que compartilham proporcionalmente do resultado final, denominados de sobras, obtidos a partir da atuação no mercado. O objetivo de uma sociedade cooperativa, com efeito, não é aferir lucros, mas possibilitar que os associados possam competir com os grandes agentes de mercado em igualdade. Daí a necessidade de uma interpretação mais ampla, que reconheça como atos cooperativos também os chamados negócios-meio, ou seja, operações com não associados indispensáveis para viabilizar os negócios-fim.
Avanço
A Emenda Constitucional nº 132/2023 reafirmou a exigência de tratamento tributário diferenciado para cooperativas, inclusive quanto ao IBS e CBS, e trouxe um importante avanço para o segmento, ao prever a possibilidade de um regime específico optativo, como se depreende do artigo 156-A, §6º, III, acrescido à Constituição de 1988 pela supracitada emenda constitucional.
Esse avanço fora importante, pois são diversas as modalidades econômicas que as cooperativas podem adotar, à exemplo de crédito, saúde, transporte, educação e outras. Considerando que as operações imunes ou que não haja incidência tributária não gerariam crédito para os adquirentes ou contratantes do serviço, caberá a cada cooperativa definir se será mais vantajoso não levar suas operações à tributação, ou não e, nesse sentido, se faz essencial a realização de planejamentos tributários que levem em consideração não somente a cooperativa em si, mas a posição desta no mercado e as relações que estabelece.
De toda sorte, a Lei Complementar nº 214/2025 também fora feliz ao estabelecer hipóteses expressas de não incidência, incluindo a destinação de recursos ao Fundo de Reserva e ao Fundo de Assistência Técnica, Educacional e Social (Fates), bem como a distribuição de sobras aos associados. Trata-se de um avanço, pois reconhece que esses fluxos não representam lucro a ser tributado, mas sim a própria essência do modelo cooperativo. Contudo, ela não responde se, caso não haja a aderência ao regime optativo esses operações, ainda assim, poderiam não ser tributadas
Ademais, a Lei Complementar nº 214/2025 limitou o alcance aos fundos obrigatórios previstos na Lei 5.764/1971. Outros fundos, criados por estatutos sociais, ficaram de fora, o que pode gerar assimetrias e até estimular planejamentos agressivos para enquadrar destinações nos fundos isentos.
Um terceiro problema está na ausência de clareza sobre como se dará a opção pelo regime específico: a lei não detalhou se haverá prazo mínimo de permanência, se a manifestação será feita em escriturações contábeis ou em declarações próprias, e quais os efeitos de uma eventual mudança de regime.
Desafios
Ainda, é preciso também destacar que diferentes ramos do cooperativismo terão desafios específicos. As cooperativas de crédito, por exemplo, devem conciliar a tributação com regras prudenciais do Banco Central; as de saúde, também deverão observar as diretrizes da Agência Nacional de Saúde, além de todas as outras exigências normativas, que denotam a elaboração de guias práticos de compliance fiscal. O mesmo vale para o setor agro. Sem regulamentações complementares, cada setor corre o risco de enfrentar interpretações divergentes em fiscalizações, mesmo porque a compreensão do ato cooperativo deve levar em consideração a atividade econômica desempenhada por cada cooperativa, levando em consideração o mercado em que se insere e os objetivos perseguidos por cada estatuto social.
Apesar desses desafios, o balanço é positivo. A reforma finalmente incorporou o cooperativismo ao debate central da tributação sobre consumo e deu respostas práticas que aproximam a realidade brasileira de modelos internacionais mais maduros.
Ao reconhecer a não incidência em operações entre cooperados e cooperativas, preservar a natureza não lucrativa das sobras e permitir um regime optativo com crédito garantido para terceiros, o legislador avançou na direção correta, ainda que pudesse, ao nosso sentir, possibilitar um creditamento fictício para aquelas cooperativas que optem pelo regime diferenciado, por mais que não haja a incidência tributária em algumas operações.
O que falta agora é consolidar a segurança jurídica com regras claras de opção, ampliação do tratamento para outros fundos e detalhamento da transferência de créditos.
Em última análise, o adequado tratamento tributário ao ato cooperativo deixou de ser uma promessa distante da Constituição de 1988 para se tornar uma realidade em construção. A EC 132/2023 e a LC 214/2025 abriram o caminho. Cabe aos reguladores, às cooperativas e ao próprio mercado transformarem esse arcabouço, com definições claras das atividades das cooperativas por setor, com vistas a fortalecer a competitividade e dar concretude ao mandamento constitucional de estímulo ao cooperativismo.
FONTE: CONJUR